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A pedra é fruto do acaso

exposição individual de Aline Moreno

Belizário Galeria, 2023

curadoria

texto curatorial:

Uma pedra encontrada na rua, do tamanho da palma da mão, tem a mesma forma de uma montanha de 5 mil metros de altura, que por sua vez se assemelha a uma topografia criada digitalmente por um algoritmo. É nesse jogo de equivalências e na experimentação de materialidades que, há 7 anos, Aline Moreno pesquisa a paisagem. 

Sua prática pode ser caracterizada como um colecionismo de montanhas em diversas formas de representação. Num primeiro momento, se aproximando da paisagem através de uma abordagem não pictórica, a artista partiu da apropriação de pedras encontradas na rua ao acaso, usando-as para aludir a paisagens montanhosas, vistas à distância, e confrontando-as com materiais como papel, madeira e gesso. Em seguida, passou a usar as mesmas pedras como moldes para a produção de topografias em concreto, gesso e cimento branco. Quase sempre emoldurados ou apoiados em estruturas ortogonais, as proporções desses trabalhos se estabelecem em função da pedra de referência, um ponto de partida aleatório para uma sequência de procedimentos determinados e controlados. É a partir dela que a obra ganha forma, dimensão e materialidade. Uma montanha pode se desfazer, mas uma pedra, mesmo quando fragmentada (e também o seu fragmento), segue sendo pedra. Ela carrega uma memória milenar de sua formação geológica e é a base para uma tentativa sempre inconclusa de captura da forma orgânica pelos modelos geométricos e artificiais da racionalidade humana.

Posteriormente, Moreno passou a trabalhar com topografias criadas por algoritmos computacionais e materializadas em gesso e resina. Paisagem infinita (2022) é a obra mais significativa com esta abordagem. “A paisagem que constituímos espontaneamente é produto de operações intelectuais complexas”, nos diz a filósofa francesa Anne Cauquelin (A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007, p. 182). Sem um referente geográfico ou físico, a paisagem se revela como uma criação humana passível de transformações ao seu bel prazer. Em contraposição a um ideal de natureza idílica, pura e intocada, a artista nos apresenta uma natureza processada, industrializada, com os vestígios de sua fabricação. Afinal de contas, no antropoceno, nada é intocado pela humanidade.

Mais recentemente, Aline Moreno passou a trabalhar com imagens de satélite de grandes montanhas tridimensionalizadas e manipuladas digitalmente, numa aproximação à linguagem da cartografia, mas também da representação pictórica da qual tinha se afastado a princípio. Inviabilizada a identificação dos referentes originais, as montanhas ali representadas, já sem nome, passam à condição de um não-lugar (conceito proposto pelo antropólogo francês Marc Augé). Ao serem desterritorializadas, tornam-se pura ideia. Não é necessária a presença do corpo naquele espaço, trata-se de uma aproximação de ordem visual e conceitual. O ponto de vista é distante, aéreo, e a perspectiva só se faz perceptível a partir da introdução de elementos geométricos (planos bidimensionais inseridos digitalmente) que se contrastam com as formas orgânicas. Mesmo quando a artista faz operações digitais, sua obra sempre volta para processos analógicos. Neste caso, tais imagens voltam a adquirir materialidade em forma de colagem e pintura sobre madeira. 

Aline Moreno desenvolve com a paisagem uma relação de anonimato e impessoalidade, uma relação de corpo ausente, baseada em aspectos visuais, matemáticos e conceituais. Coleciona montanhas como quem coleciona pedras, como objetos que são, antes de tudo, ideias. Para diversos povos originários, as montanhas são sagradas, são ancestrais, são parentes. Em culturas que vivem próximas a cordilheiras, montanhas que se destacam ganham nome e personalidade, viram símbolo de identidade e suas imagens são reproduzidas como afirmação de pertencimento. Já para o sistema capitalista extrativista, montanhas e morros são commodities a serem explorados, barreiras de futuras represas, obstáculos indesejáveis à expansão urbana ou cartões postais para a venda de pacotes turísticos. Segundo o filósofo indígena Ailton Krenak:

"Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista." (Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 24) 

Consciente dessa complexidade, ao utilizar ferramentas cartográficas de forma subvertida, na direção contrária do ordenamento, embaralhando procedimentos de normatização e confundindo o nosso olhar, Aline parece colocar em evidência o mecanismo mental por trás desses processos de despersonalização. A geometria precisa se encontra com a imprecisão do traço, a matéria prima bruta com o material processado industrialmente, a perenidade da pedra se contrasta com a efemeridade do papel e da madeira. No embate entre as formas orgânicas e o racionalismo da geometria ortogonal cartesiana, o pensamento parece tentar, de forma fracassada, subjugar a natureza às suas próprias regras e lógicas de ordenamento.

Marina Frúgoli

curadora

fotos por Ana Helena Lima

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