
texto curatorial:
“Temos que reflorestar o nosso imaginário e, assim, quem sabe, a gente consiga se reaproximar de uma poética de urbanidade que devolva a potência da vida”
Ailton Krenak
Corina Ishikura procura em dados demográficos, em porcentagens de cobertura vegetal, em rankings de riqueza e pobreza e em listas de unidades postais por indícios de urbanidade que denotam uma forma específica da humanidade estar na terra e se relacionar com a natureza ao seu redor. Ela reconhece que esta forma não é a única, mas sim a predominante e a produtora de grandes desigualdades. A artista, nascida em São Paulo, tem a cidade como seu habitat. Com uma produção pictórica e instalativa que se caracteriza pelo contraste entre dimensões sutis e exacerbadas, por formas abstratas e geométricas, pela presença do vazio e pela sobriedade no uso de cores, através das obras é possível enxergar uma artista consciente do exagero que é a expansão urbana sem limites e preocupada com as desigualdades sociais e a destruição ambiental decorrentes desse processo.
Como pontos de partida para a criação de suas obras, Ishikura parte de dados estatísticos, mapas de aplicativos de navegação por GPS e fotos feitas por satélite, tecnologias e procedimentos criados com intuitos desenvolvimentistas e colonialistas: mapear para controlar, para exercer o domínio sobre territórios, suas populações e seus recursos naturais. A própria ideia de natureza como um recurso é reveladora de uma postura extrativista inconsequente. Se os números em si são conceitos impalpáveis, a artista sai do campo abstrato da planilha de dados e parte para o mundo concreto utilizando na criação de suas obras transmutações de árvores, ou o que resta delas após o seu “abate”: madeira crua, carbonizada e pintada com tinta a óleo preta, carvão, papel queimado, aquarela das cinzas do papel…
O processamento dos dados coletados e sua materialização se dá por procedimentos diversos. Estatísticas de demografia por município, de vegetação por estado ou de PIB por país materializam-se em pontaletes de madeira, se espacializam em formas que explicitam o crescimento desmedido, às alturas, e suas desigualdades decorrentes. Já nas vistas de satélite e mapas de cidades por onde a artista circulou e expôs (São Paulo, Ribeirão Preto, Campinas, Niterói, dentre outras) ela procura e destaca áreas verdes, praças e parques, resquícios vegetais sufocados pelo mar de concreto. A abordagem desdobra-se em caminhos que vão do traçado retilíneo das ruas gravado por uma máquina de corte a laser, passando pela forma geométrica de silhuetas de praças e parques e de seus projetos paisagísticos, pintadas em preto sobre madeira, em um jogo de positivos e negativos onde a praça perde seu referente geográfico e vira uma forma livre passível de múltiplas interpretações, quase como um ícone, chegando ao traçado curvilíneo e orgânico feito à mão sobre telas em pinturas que partem também dos contornos de praças, mas se distorcem de forma livre, transformando-se em um motivo pictórico abstrato. Nessas pinturas, há a predominância do espaço vazio e do uso de paletas de cores aproximadas, em geral acinzentadas, que se distanciam das cores usualmente encontradas em mapas. Apesar do ponto de partida ser a representação de áreas vegetadas, a cor verde quase não aparece nas obras. Ao recortar o mapa e dar enfoque no parque, e não em áreas que poderiam informar sobre a escassez de parques nessas cidades, será que Ishikura não sugere imaginarmos uma cidade cujo padrão de desenho urbano seja uma modulação do recorte aqui apresentado? Como se esta fosse uma célula mínima a ser replicada. A artista parece nos perguntar: será que não há formas menos destrutivas de convivermos com a natureza?
Guiada por uma visão de mundo onde não há separação entre natureza e cultura, entre pessoas e coisas, suas decisões formais são pautadas por uma abordagem conceitual que se une à escuta da intuição: o que poderiam parecer caminhos opostos ou divergentes, aqui se complementam em um processo artístico particular. Assim, deformações e jogos de proporções matemáticas criam cartografias próprias, lugares imaginados, espacialidades que permitem leituras difusas e divergentes dos dados coletados — em última instância, os dados já não mais interessam. Longe de serem gráficos ou mapas estilizados, o resultado final das obras se distancia de seus referentes de partida, adquirindo independência dos indicadores que deram origem às suas formas. Corina Ishikura aponta para as desigualdades do mundo presente e confabula outros mundos possíveis a partir do que existe hoje: frente às distopias do agora, propõe sutis utopias possíveis.
Curadoria
Marina Frúgoli
Artista
Corina Ishikura






